RETROSPECTIVA PSICODÉLICA 2024
A globalização da ayahuasca e os impactos na selva amazônica peruana e brasileira. E mais: bad trip americana, golpismo da UDV e muito mais
Certa vez, durante uma entrevista com o músico Lenine, ao falar sobre a rotina intensa entre um show e outro, ele definiu sua agenda apertada como ‘uma correria danada de boa’. Entre jornalistas, nos meus tempos de redação, os comentários eram menos ‘good vibe’. Era mais comum ouvir coisas como ‘tô no atoleiro’ ou, de forma mais direta, ‘tô na merda’. E, em casos extremos — durante fechamentos intermináveis ou plantões insuportáveis —, a expressão que melhor traduzia o sentimento era: ‘que morte triste’.
Qualquer uma dessas definições poderia descrever meu momento atual: mais um ano nadando contra a maré, dividindo-me entre a rotina de repórter freelancer e os desafios de empreender em uma jornada de trabalho que quase beira o faquirismo. Mas, como não estou dormindo em cama de pregos nem fazendo jejuns intermináveis, prefiro me apoiar na sabedoria do mestre Gil: ‘o melhor lugar do mundo é aqui e agora’.
E, graças ao bom Deus, o saldo do ano vai fechar no positivo. Consegui avançar em muitas reportagens que estavam na fila para serem escritas. Entre os destaques, fiz duas viagens para a Amazônia peruana, incluindo uma para Pucallpa, para uma matéria especial que teve o apoio do edital Conservando Juntos — uma iniciativa da Earth Journalism Network e da equipe da Internews nas Américas, em parceria com a Usaid (US Agency for International Development). Tive a honra de estar entre os 45 jornalistas selecionados.
Uma outra viagem me levou a Iquitos, a capital mundial da ayahuasca, em uma reportagem especial para o jornal alemão DIE ZEIT (de Hamburgo). Também realizei uma expedição pelo circuito ayahuasqueiro em Rio Branco e Feijó, no Acre. Até agora, essas experiências resultaram em duas reportagens: uma publicada no Valor Econômico e outra na Revista Superinteressante.
Outras matérias sobre essas viagens já estão no forno e, em breve, serão publicadas na Psicodelicamente, que continua avançando e se prepara para celebrar seu terceiro ano de vida, repleto de novidades. Além disso, o blog da revista na CartaCapital está a todo vapor, caminhando para seu segundo ano com uma audiência crescente — tudo isso graças a vocês, estimados leitores.
Também tive a honra de participar de dois eventos de grande importância. Um deles foi o Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, organizado pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), em São Paulo, que, pela primeira vez, abriu espaço para discutir o jornalismo psicodélico. O outro foi a segunda edição do Congresso Brasileiro sobre Psicodélicos, promovido pela Associação Psicodélica do Brasil, no Rio de Janeiro.
Esta edição extra do Observatório Psicodélico é uma oportunidade para celebrar e relembrar alguns desses momentos especiais do ano, além de anunciar a chegada da segunda temporada desta newsletter em 2025. É também uma forma de expressar minha gratidão a vocês, leitores, que dão sentido a todo esse trabalho.
Aproveito para desejar a todos os meus mais sinceros votos de boas festas, com a esperança renovada de que, no ano novo que se aproxima, dias melhores realmente virão.
Saudações psicodélicas!
Carlos Minuano
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BAD TRIP AMERICANA
O assunto do ano que marcou a cena psicodélica global foi uma má notícia. No início de agosto, a FDA, responsável pela aprovação de medicamentos e vacinas nos Estados Unidos, recusou o pedido de licença feito pela empresa Lykos Therapeutics para a psicoterapia assistida por MDMA. A droga conhecida como ecstasy, proibida desde 1985 no país, seria utilizada no tratamento de transtorno de estresse pós-traumático, uma condição de saúde para a qual não surgiram novos tratamentos nos últimos 20 anos.
“Foi um balde de água fria para todo o setor”, lamentou Marco Algorta, empresário do setor de psicodélicos no Brasil. “As projeções econômicas das empresas estavam baseadas em um hipotético crescimento de valor após a aprovação do MDMA. Dificilmente haverá investimentos vindos do exterior para o Brasil nos próximos 18 meses.”
Para o neurocientista Sidarta Ribeiro, prevaleceu uma postura bastante conservadora, que favorece a visão mais farmacêutica. “Querem que o MDMA seja aprovado como uma substância que a pessoa compra na farmácia, para uso sem assistência de ninguém? Isso não faz sentido, não seria responsável.”
GLOBALIZAÇÃO DA AYAHUASCA
O tema da globalização da ayahuasca esteve presente em várias reportagens que escrevi ao longo deste ano. A primeira delas foi um especial publicado no blog da Psicodelicamente na CartaCapital com denúncias de lideranças da etnia Shipibo Conibo que vive no Peru sobre o risco de extinção da ayahuasca por causa de um ‘extrativismo espiritual’ a partir da planta. A reportagem que alerta para os impactos da exploração sobre a floresta e os saberes indígenas foi realizada a partir de uma viagem de 15 dias em maio deste ano para Pucallpa, na região de Ucayali, na Amazônia peruana.
Por lá, tive a honra de ser o único não indígena a participar de uma reunião urgente que reuniu dezenas de xamãs. O encontro foi dedicado a debater o futuro do turismo espiritual, a defesa dos saberes tradicionais e a proteção da floresta e dos territórios. A matéria foi citada em uma reportagem da revista americana DoubleBlind em agosto. Outras matérias sobre essa e outras viagens serão publicadas na Psicodelicamente em 2025. A reportagem sobre Iquitos, por ora publicada apenas no jornal alemão Die Zeit, em breve também ganhará uma versão em português.
AYAHUASCA NO SUS
Uma imersão no estado do Acre, o epicentro brasileiro da ayahuasca foi o ponto de partida de uma matéria para a revista Superinteressante, que também abordou outras discussões em torno da globalização do chá amazônico. Por exemplo, a inserção das medicinas indígenas, entre elas o uso ritual do chá psicodélico na Pics (Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde) do SUS.
Países que não têm nada parecido com o SUS já aderiram. É o caso do Chile: “Lá, é permitido que uma pessoa procure uma curandeira do povo mapuche para se tratar com ela dentro do que eles têm de sistema de saúde pública – que, por acaso, é bem precário. O Brasil está muito atrasado em relação a isso”, afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro, autor de mais de cem artigos científicos em periódicos internacionais e uma das fontes da reportagem.
O pesquisador observa que hoje é a classe média brasileira mais antenada que tem acesso ao conhecimento tradicional. “São os mais ricos [muitos deles, estrangeiros] que atualmente podem beber dessa fonte, que conseguem pagar para ter acesso às medicinas indígenas diretamente com os indígenas. Afinal, isso tem custos, as cerimônias são complexas.”
PRIMEIRO CENTRO DE VEGETALISMO É INAUGURADO NO BRASIL
Este ano foi marcado também por boas notícias, como a chegada do LIS (Lar e Integração do Ser) ao Brasil. Localizado em Areal, município da região serrana do estado do Rio de Janeiro, próximo a Itaipava, o centro é dedicado ao vegetalismo, um complexo sistema de conhecimento, praticado há séculos por xamãs da selva amazônica peruana.
Em meio à Mata Atlântica, o centro, que foi tema de uma reportagem na Psicodelicamente, realiza retiros chamados “dietas vegetalistas”, que duram nove dias. Esses retiros combinam isolamento na selva, em cabanas individuais, com restrição alimentar, purgas (para desintoxicação) e uso de plantas, entre elas a ayahuasca. Os trabalhos são conduzidos e supervisionados pelo curandeiro peruano Randy e pela psicóloga brasileira Karla Perdigão, cofundadora do centro, além de outros profissionais.
APLAUSOS E TRETAS NO RIO
No Brasil, um dos momentos mais esperados do ano no meio psicodélico foi a segunda edição do congresso da APB (Associação Psicodélica do Brasil), que este ano aconteceu no Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). A Psicodelicamente esteve presente em duas mesas, uma sobre a globalização da ayahuasca e outra a respeito das plantas professoras. Ambas foram elogiadas por enfatizar o conhecimento tradicional. Entretanto, o evento terminou em um clima paradoxal. Parte do público criticou a baixa representatividade de pessoas pretas e indígenas, além de apontar problemas de organização e acesso aos espaços de debate, gerando tensão ao fim do evento. Apesar das críticas, o congresso foi elogiado pela entrada gratuita e pela abordagem de temas que transcendem a perspectiva predominantemente farmacológica.
É PRECISO DAR UM JEITO, MEU AMIGO
O ano de 2024 foi marcado por novas ameaças à já frágil democracia brasileira, tornando a luta antifascista no campo psicodélico uma urgência inadiável. Afinal, como cantou Erasmo Carlos na inspirada canção “É preciso dar um jeito, meu amigo”: ‘Não vou ficar calado, no conforto, acomodado, como tantos por aí’. A música que enriquece a trilha do aclamado filme "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, pré-indicado ao Oscar de 2025, poderia certamente musicar essa notícia.
Em outubro, durante a corrida eleitoral para a Prefeitura de São Paulo, uma reportagem no blog da Psicodelicamente na CartaCapital revelou que lideranças do grupo religioso ayahuasqueiro UDV (União do Vegetal) estavam fazendo campanha para o influenciador de extrema-direita Pablo Marçal, candidato pelo PRTB.
A matéria destacou um vídeo de um evento público em que o candidato discutiu com uma mulher na plateia e declarou que “as visões do chá (ayahuasca) são coisas do demônio”. Após a publicação, um áudio de lideranças da UDV começou a circular pelo WhatsApp, anunciando a retirada do apoio ao candidato.
Pouco depois, em novembro, durante os desdobramentos da Operação Contragolpe, conduzida pela Polícia Federal (PF), outra matéria da Psicodelicamente trouxe à tona documentos, fotos e vídeos compartilhados nas redes sociais que revelavam o apoio ativo de dirigentes da UDV (União do Vegetal) a planos para um golpe de Estado em 2022, com o objetivo de impedir a posse de Lula (PT).
A revelação reacendeu divisões internas na organização religiosa, expondo as feridas deixadas pelo bolsonarismo e intensificando os debates sobre o papel político das lideranças espirituais.
As controversas conexões entre dirigentes da União do Vegetal (UDV), um dos principais grupos ayahuasqueiros do Brasil, e a extrema-direita bolsonarista também renderam uma reportagem de quatro páginas na edição impressa da CartaCapital. Ambas tiveram uma audiência expressiva nos sites e nas redes sociais da revista e também no perfil da Psicodelicamente no Instagram, mostrando a relevância da pauta.
ELES ESTÃO ENTRE NÓS
No site da Psicodelicamente, uma das matérias que mais deu o que falar foi a reportagem Psicodélicos para falar com mortos, da repórter Paula Nogueira. A matéria aborda a reconexão com entes queridos através de ayahuasca, psilocibina e ibogaína e mistérios que estão além da ciência.
Outro destaque do ano, que não poderia faltar nessa retrospectiva, é a matéria que apura o crescimento do número de cursos sobre psicodélicos no Brasil. A reportagem foi traduzida para o inglês e publicada no site do Instituto Chacruna.
Outra novidade do site são as matérias em inglês. A primeira reportagem disponibilizada no outro idioma já está no ar, ‘Shamans fear the extinction of Ayahuasca in the Peruvian Amazon’, traduzida pelo novo colaborador, Saulo Schetini e editada por Sam Schramski. Não esqueça de mandar para aquele seu amigo gringo.
Muitas outras matérias caberiam aqui nesta última edição, mas seria demais, por isso fico por aqui. Em breve, retorno com novidades.
Um forte abraço a todos. Que em 2025 não falte luz na caminhada.
Carlos Minuano